09 fevereiro 2011

 

Nem penso, mas existe - XI

O Estado apenas se lembra de nós quando devemos, pois quando nos deve, deixa andar.


"Mulher esteve morta em casa durante nove anos

Não fossem as Finanças e provavelmente ainda não se saberia. Que o cadáver de Augusta Duarte Martinho jazia há nove anos no chão da cozinha do apartamento em que vivia, na Rinchoa, em Rio de Mouro.

Mas havia uma dívida por liquidar e a ordem de execução de uma penhora.

Eram quase 17 horas de ontem quando uma agente da PSP da 89ª esquadra foi chamada para auxiliar à penhora de um apartamento na Praceta das Amoreiras. A casa já tinha sido vendida em leilão. No local estava, além da polícia, um funcionário das Finanças, a nova proprietária do apartamento que o ía visitar pela primeira vez e um serralheiro com a incumbência de arrombar a porta e colocar uma nova fechadura, procedimento banal neste tipo de situações.

Mas ao contrário do esperado, a porta não abriu totalmente. Havia uma corrente de segurança que o impedia. E chaves ferrugentas na fechadura. Surpresa. Seguida da suspeição de que algo de errado se passava.

No chão da cozinha do apartamento, encontraram o corpo em avançado estado de decomposição de Augusta Duarte Martinho que, no próximo sábado, completaria 96 anos. Os seus animais de estimação, um cão e dois pássaros estavam também mortos na varanda.

De concreto, sabe-se apenas que há muitos anos que Augusta Martinho deixou de ser vista e que a última vez que pagou o condomínio foi em Agosto de 2002, há nove anos.

O prédio onde vivia há cerca de 30 anos, tem cinco andares com três apartamentos cada, todos habitados. Mas apenas uma das vizinhas do primeiro andar, Aida Martins, se relacionava com Augusta Martinho. “Ela vivia só, não se lhe conhecia família e não se relacionava facilmente”, diz, em declarações ao PÚBLICO.

Foi a caixa de correio cheia que lhe chamou a atenção, conta. Mas cartas, só havia da Segurança Social com os vales da sua pensão. “Só sabia que era reformada, ela nunca me disse qual era a sua profissão mas disseram-me que parece que era educadora de infância”.

Como a vizinha não aparecia, Aida Martins decidiu participar o seu desaparecimento à GNR. O processo ficou com o registo 2274/2002 e NUIPC 1086/07.2 TQSNT. “Disseram-me que não podiam chegar e abrir a porta”, diz Aida Martins. Que ela saiba, “nada foi feito” para investigar o paradeiro de Augusta Martinho.

“Dei um exemplo de cidadania, fiz o que estava ao meu alcance, aqui ninguém se interessou”.

Aida Martins resolveu então procurar alguém da família da vizinha. E conseguiu encontrar cinco sobrinhos que não se davam com a tia e um primo, Armando Gaspar de 84 anos. “Acompanhava-a sempre, às compras e ao médico”, diz ao PÚBLICO. E conta que a última vez que a viu foi antes de uma viagem até à Beira Alta onde tem uma casa. “Quando voltei fui lá a casa, fartei-me de tocar mas ela não abriu, nunca mais respondeu”.

Resolveu então participar o caso à PSP. O auto de denúncia tem o número 2274/2002. Mas era preciso ordem do tribunal para abrir a porta do apartamento, explicaram-lhe. Por isso, ele resolveu dar notícia do desaparecimento ao tribunal de Sintra, conta. “Fui lá 13 vezes, ainda a semana passada por lá passei. Nunca consegui autorização para arrombar a porta”, afirma.

Também Laurinda Cardoso, vizinha do terceiro frente, estranhando a ausência de Augusta Martinho decidiu participar o seu desaparecimento à Polícia Judiciária. “Ainda cá vieram e telefonaram para cá uma duas vezes, perguntando se a senhora já tinha aparecido, mas mais nada”, diz.

Passaram nove anos. No chão da cozinha. Ninguém se interessou. Ninguém investigou.

Os restos do seu corpo foram ontem transportados para o Instituto de Medicina Legal para que seja determinada a causa da morte.

Jornal Público - 09.02.2011"

Comments:
... não devia ter herdeiros!!
 
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